O relato sobre a prática pedagógica da amarelinha, evidencia o caminho percorrido para a consecução de uma prática educacional alicerçada nos Estudos Culturais. Atende também à proposta curricular da rede Municipal de ensino, na qual se insere os alicerces para a prática ancorada nos conhecimentos socializados na comunidade; articula-se com os documentos elaborados pelos grupos colegiados escolar e com as discussões fomentadas nos horários coletivos de
professores.
Nessa sentido, trata-se de uma experiência didática que
valorizou os saberes das crianças, em seguida, ampliar e aprofundar seus conhecimentos sobre o tema em questão. Colocou os
alunos como produtores de cultura e desconstruiu representações
elaboradas em meio às relações de poder que marcam sujeitos em
posições sociais assimétricas, no caso, os sujeitos infantis
Publicado no site do
http://www.gpef.fe.usp.br/ no ano de 2014 em forma de ebook o relato também foi fruto de trocas em formações e eventos na área da educação e educação física.
Acesso ao ebook.
http://www.gpef.fe.usp.br/teses/EF_culturas_volume_2.pdf
O RELATO
Este projeto foi desenvolvido no ano de 2012, na EMEF M’ Boi
Mirim III, atual EMEF MARLI FERRAZ TORRES BONFIM, com a turma do 3º Ano do ciclo I. A escola pertencente à
DRE Campo Limpo e está situada nas proximidades do largo do Jardim Ângela, bairro do extremo sul da capital paulista. A unidade recebe crianças vindas de bairros mais distantes como Jardim Nakamura,
Menininha e Parque Novo Santo Amaro, em função do aumento do
tempo de permanência dos alunos nas instituições educativas municipais de 04 para 06 horas. A situação coloca frente à frente sujeitos de
culturas diferentes, promovendo algumas relações tensas entre eles. O Projeto foi desenvolvido pelo Prof. Franz Carlos Oliveira Lopes e comentado pelas
Profº(as). Glaucia Tiemi Shigetomi e Simone Alves. Com a finalidade de realizar um trabalho mais dialógico entre
a prática pedagógica e os documentos elaborados pela unidade,
como o Projeto Político-pedagógico (PPP) e os horários coletivos
compostos pela Jornada Especial Integral de Formação (JEIF) e Projeto Especial de Ação (PEA), visualizei um percurso lado a lado
com esses elementos que norteiam o trabalho dos demais professores. Apesar do PPP estar em construção, o PEA estava definido e
apresentava como tema: “Refletindo e dialogando com as práticas
didáticas dos educadores nas diferentes áreas do currículo e ciclos, na perspectiva de uma aprendizagem significativa - além das
letras”. A decisão do tema deveu-se ao fato de que as áreas do conhecimento dentro da unidade estarem muito fragmentadas. Ainda
havia pouco diálogo entre os componentes do currículo.
No início do ano letivo, com o intuito de reunir informações
que orientassem o projeto a ser trabalhado, realizei o mapeamento da região a fim de reconhecer as manifestações corporais que
constituem o patrimônio cultural da comunidade. Para que fosse
possível a coleta, solicitei a elaboração de desenhos sobre as brincadeiras presentes na comunidade bem como em outros espaços
frequentados pelos estudantes como clubes, praças e associações
comunitárias. Neste caso, solicitei que focassem as vivências que
ocorreram durante as férias escolares. Para a elaboração desse registro foram utilizadas aproximadamente duas aulas.

Ao final, os alunos apresentaram suas produções e comunicaram suas
representações a respeito do tema. Entendo que o posicionamento das
crianças sobre as coisas do mundo é de suma importância, pois apontam
Amarelinha: os elementos com os quais se identificam e, por consequência, indicam o
modo como se constituem enquanto sujeitos integrantes da cultura.
Várias produções sobre as manifestações corporais foram elencadas e abordadas pelos alunos, entretanto, o desenho mais recorrente na sala foi a brincadeira amarelinha. Em meio às exposições,
apareceram grupos contrários a essa prática corporal, colocando
em xeque a prática. Para esses alunos, a amarelinha representava
brincadeira de bebê, enquanto outros acreditavam tratar-se de brincadeira de criança. Nesse momento, deu-se um debate acalorado
sobre a manifestação. O envolvimento dos alunos foi bastante expressivo. Para muitos, aqueles que estão em certa faixa etária (como aqueles alunos) não deveriam envolver-se com as manifestações ditas para os
pequenos. Ser mais velho implica não realizar certas práticas. Percebi a relevância de tematizarmos a manifestação amarelinha visto
que as representações estavam bastante polarizadas. Foram essas as
condições que motivaram a tematização da amarelinha e permitiram as problematizações iniciais do estudo.
Definido o tema, estabeleci os objetivos: promover o debate
visando reconhecer as leituras e interpretações dos alunos acerca
da manifestação tematizada; estimular, ouvir e discutir todos os
posicionamentos com relação a ela, além de apresentar sugestões
para a superação dos conflitos resultantes; oferecer novos conhecimentos, oriundos de pesquisas nas diversas fontes de informação
sobre o assunto e reconstruir a brincadeira corporalmente; e elevar
os representantes dos diferentes grupos à condição de sujeitos da
transformação da manifestação estudada.
Educação Física e culturas: Diante disso, selecionei duas expectativas de aprendizagens
presentes nas Orientações Curriculares da SME/SP e adicionei outra com base nos Estudos Culturais: “Identificar as principais características das brincadeiras vivenciadas (nome de artefatos, movimentos, regras, forma de organização, quantidade de participantes
etc.)”; “Elaborar formas de registro a partir das vivências (desenho,
escrita, fotografia, relato oral)”; e “Desconstrução das ideias fixas
que relacionavam a amarelinha a uma determinada faixa etária”.

Uma vez delineadas as intenções, organizei vivências das
amarelinhas que os alunos desenharam durante o mapeamento,
uma vez que o acesso aos códigos corporais das comunidades em
que vivem seria uma importante estratégia de reconhecimento das
suas identidades culturais. Apesar de apresentarem apenas um modelo de jogo, alguns jogavam de modo diferente. Aproveitei para
destacar as características das maneiras diversas de brincar. Evidentemente, isso ampliou a leitura dos alunos sobre a amarelinha. Como foi apresentado apenas um formato da brincadeira, recorri a outras fontes de informação que traziam olhares diferentes
e contraditórios para com as representações iniciais. Além disso,
essa etnografia faria emergir conteúdos de ensino ancorados socialmente.
Em pesquisa com os alunos pela internet, recolhemos vídeos
e textos sobre a manifestação. Encontramos um texto com várias
informações, que apresentava tipos diversos da brincadeira, seus
modos de jogar, sua chegada da Europa, entre outras. Colhi as informações e organizei as atividades de ensino que se referiam à
ampliação e ao aprofundamento.
Na sequência, retomei as vivências e promovi a discussão sobre as práticas das diversas amarelinhas pesquisadas. Nos textos, os
alunos identificaram as formas de brincar e os diferentes traçados
da amarelinha conforme a região do Brasil. Em São Paulo e Rio de
Janeiro a amarelinha possui formato e regras bastante semelhantes.
No Acre, Pará, Amapá, Ceará, Rio Grande do Sul e Piauí o nome
dado é macaca. O diagrama da macaca é parecido com o da amarelinha paulista com algumas alterações: o desenho começa com duas
casas únicas, o céu é dividido em “lua” e “estrela” e não há inferno. A brincadeira é muito popular nos Estados do Norte do Brasil,
onde, em vez de usar uma pedra, as crianças usam um saquinho
cheio de terra chamado “patáculo”. Cada participante tem seu próprio “patáculo”, que é guardado em pequenos quadrados desenhados ao lado da primeira casa do diagrama.
Cademia é o nome de costume em Pernambuco. O desenho
do “tabuleiro” da cademia tem um céu, uma casa dupla chamada
“asa” e algumas casas únicas. Em Pernambuco também se brinca de cademia do pão-doce. O
diagrama é composto por um retângulo com seis casas dividas em
duas fileiras de três e uma área oval no topo, que representa o céu. A pesquisa também constatou em Pernambuco a amarelinha
do caco. O diagrama é formado por um quadrado, com um “x” no
meio (formando quatro casas), uma área em meia-lua no topo (o
“céu”) e um quadrado menor na outra extremidade (a casa 1).
Outra, mais conhecida, é a do caracol. No chão, desenha-se
uma grande espiral, começando do meio para fora, dividindo o seu
interior em “casas”. No centro fica o “céu”.
As aulas em que os estudantes praticaram, analisaram e interpretaram vídeos e textos que apresentavam diversas formas de
realizar a amarelinha, além da realização de pesquisas orientadas
previamente, possibilitaram maior entendimento de outros significados atribuídos à amarelinha.
O passo seguinte foi a construção da brincadeira pelos alunos. A experiência foi importante porque posicionou-os como produtores de um artefato cultural e da sua ressignificação. Valendo-se
das ideias citadas e divididos em grupos, os alunos deram início ao
processo de produção de novas formas de amarelinhas, primeiramente em folhas de papel craft. Também deveriam criar as regras.
Após o tempo estipulado, os grupos socializaram suas produções com outros grupos. Surgiram construções como amarelinha
cobra; amarelinha quatro cantos; amarelinha direita esquerda; amarelinha corpo humano. Usamos algumas aulas para experimentar as invenções e aperfeiçoá-las redesenhando ou modificando as regras quando necessário. Essas produções também foram
socializadas na Mostra Cultural realizada na escola. Evento que
contou com a participação dos pais e comunidade escolar.
Com a finalidade de materializar os discursos trazidos pelos
textos sobre as diversas formas de vivenciar as amarelinhas, recorremos a vídeos que remetiam às práticas realizadas em aulas. A
internet foi o aporte da pesquisa. Selecionamos algumas das formas
praticadas em aula. Rapidamente os estudantes perceberam que
algumas das pessoas que apareciam brincando nos vídeos eram
adultos. Foi o ponto de partida das atividades de desconstrução da
vinculação entre faixa etária e a prática corporal.
A desconstrução visa desnaturalizar certa representação e fazer perceber que todo artefato cultural é uma construção humana
marcada por conflitos e relações entre sujeitos e, com o tempo,
tende a parecer mera evolução. Para além da assistência aos vídeos
que apresentavam adultos, jovens e crianças realizando a manifestação e as conversas que se sucederam, promovi uma visita ao
Centro de Educação Infantil (CEI) Tancredo Almeida Neves, uma
instituição de educação infantil próxima à unidade de escolar.
Fui ao CEI e conversei com os responsáveis para explicar os
objetivos da visita e combinar os procedimentos. Orientaram-me a
encaminhar um oficio em duas vias. Solicitei à direção e coordenação da escola que cuidassem desse assunto. Na data marcada, fomos ao CEI. Elaboramos previamente um roteiro de três perguntas
para entrevistar as professoras dos pequenos: Quais brincadeiras
são realizadas pelas crianças? Como é o dia das crianças no CEI?
As crianças brincam de amarelinha?
Os alunos foram divididos em dois grupos, cada qual acompanhado por duas professores da EMEF, sendo uma delas a professora da sala. Essa colaboração foi fundamental na organização
da conversa dos alunos com as educadoras do CEI.

A atividade foi
realizada sem alterar a rotina das crianças.
Nas aulas seguintes, fechamos o estudo com uma longa discussão sobre as práticas realizadas no CEI, pautada tanto pelas informações fornecidas pelas entrevistadas como pelas observações
dos alunos. Na primeira questão, as professoras responderam que
os alunos não sabiam brincar de amarelinha, uma vez que poucos deles conheciam os números, formas e regras. Os alunos observaram o desenho de amarelinhas em alguns espaços da instituição,
no entanto, só as crianças mais velhas brincavam da maneira que
entendiam.
Os alunos, ao socializarem suas respostas, identificaram que
algumas práticas eram semelhantes e outras distintas daquelas que
caracterizavam o cotidiano da EMEF, como jogar bola ou brincar
de pega-pega. Por sua vez, as cantigas e brincadeiras de roda foram
consideradas atividades específicas do CEI.
A rotina do CEI é diferente da EMEF. Os alunos identificaram
que as práticas de leitura e escrita são menos enfatizadas e o inverso acontece com as práticas corporais. Os alunos também têm
momentos para assistir desenhos e dormir. Algumas salas possuem
um solário.
Esse processo de análise finalizou o projeto. Eles concluíram
que a significação inicial que faziam da amarelinha era uma forma de marcar sujeitos em posições inferiores. Também se viram na
condição de leitores e escritores de práticas corporais, pois vivenciaram muitos momentos nos quais analisaram as condições da
brincadeira, acessaram formas de jogar diferenciadas e produzidas
em outro contexto, além de produzirem suas amarelinhas e as socializarem entre si e com a comunidade. Considerações
Ao buscar ancorar seu trabalho nos Estudos Culturais, o
professor recusou a transmissão de conhecimento elaborado
previamente e, ao contrário, de modo democrático, assumiu o
compromisso de legitimar os saberes culturais daquela turma de
alunos.
Assim, comprometido com um trabalho embasado teoricamente, para erigir o tema que seria estudado nas as aulas de
Educação Física na turma do 3º ano A, estabeleceu como ponto
de partida o mapeamento do patrimônio cultural corporal das
crianças. Solicitou que os alunos produzissem registros que indicassem as práticas corporais vivenciadas nas férias e as que
ocorriam cotidianamente em suas comunidades. O propósito
dessa atividade foi selecionar a manifestação a ser estudada
dentre as pertencentes ao universo local. Logo, entendemos que
ouvir as crianças é uma atitude que caracteriza a prática do
professor.
Partindo dos registros que apontavam os significados dados
pelas crianças às manifestações corporais, surgiu um tenso debate quanto à adoção da brincadeira da amarelinha como tema
das aulas.

O professor observou que essa discussão estava polarizada na turma marcava simbolicamente um grupo específico, pois constatou certo preconceito em relação à faixa etária.
“Brincadeira de bebê ou de criança?”, essa foi uma das falas
mais disseminada pelas crianças nas aulas iniciais. Como trabalhar uma manifestação corporal com e a partir
dos alunos, ao mesmo tempo em que acena para ser contemplada nas aulas, também restringe por estar atrelada a algo secundarizado? Este questionamento juntou-se às expectativas de
aprendizagem propostas pelo professor.
Cabe apontar que o contexto atual está fortemente invadido
pelos veículos de informação. Por meio das diversas mídias, as
crianças acessam variados discursos. Um deles diz respeito ao
modo ideal de ser criança, podendo inclusive produzir efeitos
de verdade no comportamento das mesmas, atuando na construção de representações a respeito do que é ser criança e quais
brincadeiras realizar. Isso pode conferir maior ou menor status
às práticas em função da faixa etária.
O discurso utilizado pelos alunos evidenciou o menor status que é dado à amarelinha, quando está atrelada à brincadeira
de bebê. Com intuito de contribuir com novas leituras, o professor utilizou algumas estratégias: vivências, discussões e registros
sobre a manifestação estudada. Da mesma forma, pesquisou na
sala de informática, juntamente com as crianças, outras formas
de brincar de amarelinha. Nesta ocasião, foram recolhidos vídeos e textos sobre a manifestação.
Outro ponto que caracteriza a pedagogia narrada foi a abertura aos alunos para que atribuíssem novos significados à manifestação. Com isso, o professor posicionou os alunos como
sujeitos históricos e produtores de cultura. Sem perder de vista o discurso que atribuiu um menor status
à brincadeira - quando atrelada aos bebês, e tencionando a desconstrução do mesmo, o professor apresentou vídeos com sujeitos distintos brincando de amarelinha. Articulou essa atividade
a outra: uma visita ao CEI que se localiza próximo à unidade
educacional para que as crianças pudessem identificar práticas
semelhantes e distintas daquelas praticadas na EMEF, além de
verificar se as crianças pequenas brincam de amarelinha.
O acompanhamento pedagógico com a utilização dos registros, conversas com as crianças, utilização de variados textos
sobre a chegada da manifestação ao país, diferenças regionais,
vídeos, roteiro de questões e a saída pedagógica monitorada,
possibilitou aos estudantes vivenciar e refletir sobre os saberes
que possuíam sobre a brincadeira. Ao aceitar essas condições, o
professor criou a possibilidade de todos serem respeitados, além
de valorizar o universo infantil. O que demonstra uma preocupação em não limitar sua prática pedagógica ao movimento em si,
mas estabelecendo uma relação com a dinâmica social na qual a
manifestação está inserida. Com isso, o professor contribuiu para
que seus alunos desconstruíssem a representação de que a amarelinha é brincadeira de bebê.
As atividades realizadas demonstraram que o projeto foi além
da provocação inicial apresentada no título do trabalho, uma vez
que as crianças tiveram a oportunidade de perceber que não se trata de brincadeiras de bebê, mas que tanto crianças, adolescentes e
adultos podem se envolver com a manifestação corporal estudada.



